Sexta-feira, 24 de Fevereiro de 2017
Umas palavras sobre a razão do aparecimento do meu blogue "Tributo a Zeca Afonso" e como conheci Zeca Afonso
Diz Fausto: «Em 1975, o MFA convida-me a mim, ao Zeca e ao Adriano para irmos a Angola. Fomos cantar e tocar em sessões prioritariamante dedicadas aos soldados portugueses que lá estavam, com os acordos de Alvor ainda frescos (Janeiro de 1975). O espetáculo na cidadela de Luanda teve mais de vinte mil pessoas. Além de nós, atuaram o Rui Mingas, o Tonito, Lamartine (Carlos) e um conjunto angolano, Merengue. Viajávamos num avião da Força Aérea e fizemos espetáculos em Cabinda…» (in Zeca Afonso – “Livra-te do Medo” de José A. Salvador)
E foi em Cabinda que conheci Zeca Afonso. Tinha vindo da floresta do Maiombe, de Tando Zinze propriamente dito onde tínhamos o aquartelamento, aquartelamento esse que foi entregue ao MPLA. Aguardava no B.Caç.11 (Gorilas do Maiombe) embarque para Luanda onde iria passar à disponibilidade quando fomos convidados para irmos ao Cinema Chiloango onde iriam cantar o Zeca, Fausto e Adriano. Já ouvia Zeca do qual tinha alguns discos e muitas cassetes com música dele. Nessa época não me apercebi que Zeca era uma “persona non grata” para o Estado Novo, pois em Angola a influência da PIDE era muito discreta e nem sabia que existia. Ouvia as canções do Zeca sem problemas e na tropa até parodiávamos com os nossos superiores cantando a “Ronda dos Paisanos” mas com letras nossas as quais já não me lembro.
O Cinema Chiloango estava apinhado de soldados. Eu sentei-me fardado na escadaria que dava acesso ao palco. “Trova do Vento que Passa”, “Os Vampiros” e tantas outras canções que ouvia no meu gravador, passaram por aquele palco. Última canção… “Grândola, Vila Morena”. Aqui o Zeca pediu para quem quisesse, subisse ao palco para cantar. Mal tinha acabado de dizer isto já eu estava com o meu braço enlaçado no dele. E foi assim que em janeiro de 1975 “conheci” o Zeca.
Até 2014, de Zeca Afonso só conhecia as suas músicas tendo-lhe feito uma página musical que me demorou 8 anos a fazer. (2007/2015). Ao integrar-me no FB “Grupo de Amigos de José Afonso” é que me apercebi que havia mais, muito mais, sobre a Vida e Obra do Zeca. Mas aquele FB não tinha os requisitos para o que desejava; falar exclusivamente, sobre tudo a que Zeca dizia respeito. Assim criei o meu próprio FB, onde só é permitido “falar” de Zeca. Assim nasceu o meu “Tributo a Zeca Afonso”. Muitos inéditos foram já conseguidos. Muitos outros foram prometidos, mas até hoje as promessas não passaram de intenção. Mas não há que desanimar, o caminho faz-se caminhando. Com boa vontade de poucos, muito se consegue. E é nesse sentido que o ‘Tributo’ irá continuar. (…)
Nos Cantos Livres, cantando em locais inimagináveis, Zeca foi a voz do povo. Foi um homem humilde, honesto, solidário, que deu o melhor de si: «Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que fica»… e está tudo dito.
Mário Lima
Aqui:
http://www.ofado.pt/?p=6364
Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2017
Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.
O Sr. José Manuel Mendes (PCP):
- Sr. Presidente, Srs. Deputados:
«Plantei a semente da palavra», escreveu José Afonso um dia. E o verso é uma sinédoque dos mundos de insubmissão e criatividade que acordou, com pertinácia e grandeza, ao longo de uma vida.
Lançou à terra inóspita do tempo novas raízes de transformação: o sonho que fermenta, a solidariedade, a confiança nas humanas forças associadas, a coerência, a inteireza moral.
Era «duma vaga pátria carinhosa», cantou «a fome de justiça», as dores e as expectativas comuns, a pobre gente que não entra nas crónicas falantes: a mulher da erva, a cigana andarilha, o Ti Alves aguardando uma recolha que valesse o suor do rosto, o menino do bairro negro, um pastor de Bensafrim, Catarina e o cavador do Alentejo da desolação, o maltês, o emigrante, Miguel Djéjé, tocador de viola no Xipamanine, os trabalhadores para quem a bucha é dura e a tenacidade maior.
Denunciou os esbirros, os vampiros e os eunucos, os canalhas que elegem o oportunismo, em regra os príncipes fautores das desigualdades e da opressão. «Dente por dente» jurou desafrontar o escultor que a PIDE assassinara, os que, tombando no caminho, fertilizam o húmus que robustece a marcha indetível para o devir da fraternidade sem puas.
Nunca o demoveram as perseguições e as hostilidades: incitou, até ao fim, à porfia e à coragem. Foi aos lagos do breu acender fogueiras de libertação e não espargir as lágrimas do conformismo; nos locais de miséria promoveu a indocilidade; disse a luta no plural.
Se «há homens que apodrecem aos rebanhos», só os impulsos metamorfoseadores importam. O desafio perdura, enquanto houver «força/no braço que vinga»:
Que venham ventos
Virar-nos as quilhas
Seremos muitos
Seremos alguém.
Preso pela ditadura fascista, impedido de dar aulas, silenciado na rádio, na televisão e nos jornais, compelido a agenciar o quotidiano numa refrega árdua, Zeca Afonso não desarmou na busca pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo.
A Revolução de 1974 deve-lhe o sinal de partida. Grândola, Vila Morena, não ardeu num fogo de palha; fulgiu como um símbolo do 25 de Abril de sempre, integrado pelas históricas conquistas da rebeldia progressista e incentivadora dos avanços indeclináveis para a construção daquela
cidade
sem muros nem ameias
com
gente igual por dentro
gente igual por fora
de que nos fala uma das últimas belíssimas canções que gravou.
Inigualável inventor musical, senhor de uma comunicabilidade singular, captou e reelaborou, aprofundou e enriqueceu a matriz originária popular dos textos que o mobilizaram.
A sua voz tinha uma cor e um timbre inimitáveis, onde se fundiam rigor e sensibilidade, harmonizando, como em retíssimos autores, o poema, nos seus acentos e ritmos, e a melodia, desencadeando a afectividade, a emoção, o irrecusável senso gregário. Modificou a moldura da música portuguesa desde as baladas, ainda de inspiração coimbrã, às composições ousadas de modernidade que dele fizeram uma personalidade de vanguarda. Influenciou, estética e politicamente, gerações sucessivas.
A sua arte, que acolhia Camões e Fernando Pessoa, Tolentino e a sátira sobre a circunstância, o cancioneiro sentencioso, lírico e brejeiro da tradição oral ou escrita do nosso povo, não enjeitou os contributos das experiências realistas da época que vivemos; é, assim, um nó laborioso de autenticidade em que descobrimos, espelhada, a nossa face ávida de equanimidade e determinação.
Sincero, recto, afável, cativante, o criador de Cantigas do Maio, gerava amigos com uma simplicidade admirável.
Em Portugal e no estrangeiro são incontáveis os que se quiseram a seu lado, independentemente de pontuais discensos, nos momentos ásperos da resistência antifascista como nos eufóricos, nos instantes da doença como nas jornadas em prol de um pais melhor.
Os poderes públicos ignoraram-no; as estações emissoras audio-visuais trataram-no como estranho e de coração pouco dado. Ele não era da estirpe dos que se acomodam. Pagou o tributo - como gostava de lembrar - de uma verticalidade sem máculas.
Pretendeu que não puséssemos luto e cantássemos. Pelos carenciados, pelos sujeitos às diversas maquinações da opressão entre nós e nas lonjuras do orbe, pelo futuro que aí se desenha.
«Somos filhos da madrugada», conhecemos «o que faz falta», aprendemos com ela que a tristeza vem, não raro, da preguiça, e que «há que subir o tom, mudar de fado».
Por isso, ainda que de peito escurecido pela amargura de o havermos perdido, fisicamente perdido, tão cedo, é com o José Afonso que entoamos as cintilações de uma quadra escrita em Caxias, antes das torrentes do renovo:
Outra voz outra garganta
Outra mão que se estende à que tombara
Uma fagulha num palheiro acesa
Ó meus irmãos a luta já não pára.
Aplausos gerais.
Quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2017
Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.
O Sr. Presidente:- Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, meus caros José Manuel Mendes, Raul Castro, José Gama, José Carlos Vasconcelos, António Capucho: É fácil falar depois de vós. Antes de mais, para, na qualidade de cidadão português e de irmão que fui - porque assim me considero do Zeca Afonso, vos agradecer as belas palavras que sobre ele aqui trouxestes.
De entre todos aqueles que admiram o Zeca Afonso tenho um raro privilégio: ainda coincidi em Coimbra com ele durante três ou quatro anos; fui a África com o Orfeão e com ele; convivi com ele em Lourenço Marques vários anos e acompanhei-o à guitarra imensas vezes quando ele cantava, como só ele o sabia fazer, o fado clássico de Coimbra - fado que nunca renegou.
Mas já então, quando em Coimbra eu o acompanhava e ele cantava, ele fazia aquilo a que Fernando Pessoa chamou «uma revolução todos os dias dentro da nossa alma». O fado de Coimbra, que é de extraordinária beleza lírica, como sabem, não o satisfazia. E ele germinava uma revolução que veio a trazer da alma para a vida sob a forma das baladas, de que foi o inovador porque o sinal do génio é a capacidade de antecipação. Ele teve essa capacidade.
E qual foi a revolução que ele tirou da alma para a vida? Foi meter a ideia dentro da beleza do fado de Coimbra, foi harmonizar, como compositor, como poeta e como intérprete essa beleza com essa ideia e pôr essa harmonia ao serviço dos bons combates. Ele foi, no bom sentido da palavra, um revolucionário e conseguiu aquilo que nenhum de nós conseguiu: provavelmente, houve discursos geniais por parte da oposição portuguesa mas que morriam no dia em que eram proferidos, enquanto que a sua mensagem era repetida todos os dias por milhares de portugueses que cantavam as suas trovas. Essa era a sua grande força!
Devo dizer que o conheci como só os irmãos conhecem os irmãos. Ele era um «franciscano». Vivia aquela essência do franciscanismo que vive na alma do povo português; interpretou-a como ninguém.
Declarou guerra às convenções. Era homem de uma extraordinária simplicidade. E é preciso ter conhecido o seu pai que - tenho muito orgulho em dizê-lo aqui pois, porventura, nem todos o saberão - foi o mais extraordinário magistrado com que trabalhei em toda a minha vida profissional. Foi juiz da relação de Lourenço Marques e daí não passou porque era completamente surdo. Vivia isolado dos sons do mundo e, convivendo todas as horas com o mundo do direito, atingiu uma perfeição técnica e humana que, provavelmente, nenhum outro magistrado terá atingido na história da magistratura portuguesa - digo isto sem nenhuma espécie de hesitação. Seu pai dominava completamente a técnica jurídica; escrevia primorosamente o português; tinha uma intuição rara do caso jurídico; era um homem excepcionalmente inteligente - a inteligência do Zeca Afonso tem origem conhecida - e era, também e sobretudo, um homem excelente, um homem bom, tal como sua mãe, ainda viva, uma piedosa e bondosíssima senhora, que deve estar a sofrer muito neste momento.
O irmão dele, João Afonso, que também cantava muito bem o fado de Coimbra, era meu companheiro de mesa de café em Lourenço Marques e meu companheiro do grupo dos democratas de Moçambique. Continuámos lá a convivência de Coimbra. Conheço-o como conheço as minhas mãos.
A beleza das trovas de Zeca Afonso tem, em meu entender, três ou quatro origens identificadas.
A primeira é a beleza do fado de Coimbra que ele nunca renegou e que soube conciliar, exactamente, com a beleza das suas baladas.
A segunda é a circunstância curiosíssima de tocar mal viola: só sabia três ou quatro posições na viola.
A terceira origem reside no facto de José Afonso não saber música. Ele tinha que memorizar os sons. Porventura, poucos de vós imaginais o que significa ser capaz de fazer o que ele fez sem saber escrever música. Ele tinha que memorizar os sons que criava e isso não é fácil, porque é o mesmo que um analfabeto tentar decorar os Lusíadas ou fazê-los de cor, sem saber escrever os versos que cria.
Pois bem, o Zeca Afonso sabia três ou quatro posições na viola e não sabia escrever música. Esse facto imprimia às suas composições a simplicidade que lhes permitiu serem entendidas pelo povo português. Não era uma música rebuscada; era uma música à base de um, dois tons, nunca mais. Essa simplicidade permitiu-lhe poder comunicar com o povo, que é, ele também, simples, também não rebuscado, também não sabedor dos rigores da música sofisticada.
Outra das origens da beleza da sua composição - a quarta - é a circunstância de, em África, ter contactado com o folclore africano. Quem viveu em África sabe que muitas das suas composições - sobretudo depois que por lá passou - têm uma originalidade que só é possível a quem viveu em África e conviveu de perto com o folclore africano e soube entendê-lo na sua essência.
Por outro lado, Zeca Afonso era um homem que tinha como supremo referencial o homem do povo, o homem simples. Ele próprio era um homem simples, despretensioso. Não o fazia por jactância, fazia-o naturalmente: desprezava as convenções. No Algarve , salvo erro em Olhão, conviveu com os pescadores mais humildes e tem composições que lembram esse período em que por lá passou.
Mas uma outra grande fonte da originalidade e da beleza das composições de Zeca Afonso é a sua bondade como homem e é preciso que isso se registe aqui. Só a bondade, quando se consegue traduzir em arte, atinge os píncaros de beleza que atingiram as suas composições. A verdade é que ele é verdadeiramente um fenómeno. O que teria sido este homem se tivesse outros instrumentos para traduzir o seu imensíssimo talento?
Foi um artesão da canção popular portuguesa. Mas, talvez aí esteja o seu mérito, porque também as mais inspiradas composições do nosso folclore são de origem desconhecida ou têm origem em pessoas que também não sabiam música e que também não tinham outros dons que não fossem os do próprio génio.
O Zeca Afonso, para mim, é fundamentalmente um homem que soube interpretar o sentimento popular e a sensibilidade popular; que meteu a ideia dentro do fado de Coimbra; que harmonizou a ideia e o fado e os pôs ao serviço dos bons combates. Abril deve-lhe o seu hino; Portugal deve-lhe a ele, ao seu sacrifício e às suas trovas, como a muitos outros combatentes pela liberdade, a própria liberdade.
Referiu o José Carlos Vasconcelos - outro grande amigo dele - que na Balada de Outono, e é verdade, ele disse: «Eu não volto a cantar». Terá sido dos poucos enganos do Zeca Afonso. Ele vai voltar a cantar; o povo lhe emprestará a sua voz e cantará os seu poemas e a sua trova até que a sua mensagem reencarne definitivamente no homem português.
Morreu o trovador. Viva a sua trova!
Aplausos gerais.
Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.
O Sr. António Capucho (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Associando-nos ao voto de pesar pela morte de José Afonso, começarei por citar o poeta:
[...] O mito é, na maior parte das vezes, uma pista errada porque fundada mais na imaginação das pessoas do que nas contingências falíveis da acção humana individual ou colectiva. É preferível que o próprio objecto do mito desfaça serenamente o equívoco que lhe deu origem para que ele mesmo não se convença de um mérito que por justiça efectivamente nunca lhe devia ter pertencido.
[...] Só nos sentimos úteis quando somos solicitados e isso compensa-nos de muitas frustrações que o mito esquece quando nos simplifica, reduz ou exalta.
José Afonso não é um mito e recusou sê-lo. Não seremos nós a contribuir para a sua mitificação.
Mas foi. É e será um nome essencial na cultura portuguesa.
Como compositor, autor e intérprete distinguiu-se como um dos maiores valores contemporâneos da música popular portuguesa.
Escreveu versos simples e curtos, de fácil apreensão, mas nem por isso desprovidos de qualidade e da eficácia que os justificavam. Versos que harmonizou e equilibrou notavelmente com a sua música, a obra musical de José Afonso representa uma relação profunda e íntima com o homem e a realidade concreta que o circundava.
A tudo isto juntava um dom excepcional: uma voz única, límpida, vibrante e profunda.
A resultante era uma unidade quase perfeita no género musical que adoptou: palavras e música quanto bastavam, nem a mais, nem a menos; depois aquela voz; finalmente, como consequência necessária, um poder e uma força comunicativa extremamente fortes.
Porque politicamente nos separava um abismo, estamos particularmente à vontade para lembrar José Afonso, também no que transcende a sua carreira como músico.
Homem do povo, de costas voltadas para o poder e rejeitando o carreirismo, distinguiu-se pela sua simplicidade e desprendimento pelos valores materiais, mas também pela coragem e frontalidade com que assumiu uma luta com as armas de que dispunha e que melhor do que ninguém sabia utilizar.
Na luta desenvolvida, designadamente pela minha geração no mundo académico, contra o totalitarismo e o obscurantismo, José Afonso teve um papel relevante na sensibilização e mobilização das mentalidades.
E teve talvez a suprema distinção da sua carreira quando uma criação sua foi escolhida para detonar o movimento militar que desencadeou a Revolução de Abril.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, para terminar estas simples palavras em homenagem ao homem, ao músico e ao poeta, permitam-me que vos leia um pequeno excerto do poema de José Afonso Jesus no Horto:
Homem viagem da democracia.
Homem península vítima da hora.
Cobrem-lhe a pele os Ciclos Vespertinos.
E a morte ronda quando não demora.
Aplausos gerais.
Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.
O Sr. José Carlos de Vasconcelos (PRD):
- Sr. Presidente, Srs. Deputados: A morte de José Afonso deixou-nos a todos mais sós, mais tristes e mais pobres. A todos os que combatemos a ditadura, a todos os que lutámos pela liberdade e pela justiça, a todos os que temos um ideal, ainda que não seja exactamente - ou, se calhar, aparentemente - o mesmo que o seu, a todos que amamos a musica, a poesia ou a arte, a todos que o admiramos, enfim, e ainda mais, a todos os que, além do resto, fomos seus amigos e companheiros, a morte de José Afonso deixou-nos, a todos, mais sós, mais tristes e mais pobres.
Com José Afonso desapareceu não só a figura primeira e tutelar da nova música popular portuguesa, como um dos maiores criadores de sempre da nossa música e um dos maiores criadores da canção popular contemporânea. Com José Afonso desapareceu um símbolo vivo do 25 de Abril, um símbolo de Abril ainda antes de Abril, uma voz ímpar livre, bela, clara, rebelde, corajosa, fraterna da nossa pátria e do nosso povo.
José Afonso começou por ser e já não era pouco que só isso tivesse sido - um grande e, logo aí também inconfundível cantor do fado de Coimbra. Depois, criou a balada, que não só representou uma substancial inovação e transformação, relativamente à velha canção de Coimbra, como em muito ultrapassou e constituiu o primeiro e decisivo passo na nova música popular portuguesa, desde a inicial Balada do Outono, melancólica e belíssima, até à frontalmente denunciadora e emblemática Os Vampiros, que marca a arrancada poderosa da cantiga de intervenção e protesto, tendo a servi-la a palavra e os poemas tantas vezes, curiosamente, com alguma influência surrealista -,do poeta que ele, José Afonso, sempre foi em todos os actos da sua vida, na acepção mais vasta e profunda do termo.
Aprofundando e ampliando esta vertente, a sua música e arte ganharam cada vez maior qualidade, assim mesmo, ou por isso mesmo, sendo cada vez mais empenhadas, humanas e fraternas. José Afonso chegou a atingir, ou pelo menos a roçar, a genialidade em tantas e tantas das suas cantigas. José Afonso transformou-se não só na voz de um protesto e de uma geração como na voz de um sonho e de um futuro. Exprimiu como nenhum outro as dores, os anseios e as esperanças colectivas de um povo o nosso povo.
Assim, nada mais natural (diria, até, inevitável) que, quando chegou o libertador 25 de Abril, José Afonso lhe tivesse dado a voz cantando que «o povo é quem mais ordena». Nada mais natural, tão natural como o sol ou o vento, que ele se transformasse, como eu disse, num símbolo vivo do 25 de Abril. Por isso, ainda, nada mais natural que, mesmo apesar da sua morte, a sua voz continue viva pelas ruas, pelos campos, pelas praias, pelas fábricas da nossa Pátria.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, permitam-me ainda que, sem seguir nenhum texto preparado, recorde um pouco esse querido amigo e companheiro de tantos dias e tantas horas, desde Coimbra até aos recitais que fizemos um pouco por todo esse país. Permitam-me que recorde uma noite de Primavera em que, nas margens do Mondego, o amigo me pôs a mão no ombro e disse «vou-te cantar uma coisa que fiz de novo» - era, exactamente, a Balada do Outono. Permitam-me que recorde com emoção essa balada que começou a mudar a música portuguesa e, afinal muito mais, neste país. Balada que, hoje, ganha um especial significado quando diz:
[...]
Água das fontes calai
Ó ribeira chorai
Que eu não volto a cantar
[...]
No seu último e único espectáculo no Coliseu - vai para três ou mais anos -, nós vimos o Zeca, já doente, incapaz de segurar os papéis contendo as letras das canções (que, aliás, nunca conseguiu saber de cor) e, com lágrimas, mais no coração do que nos olhos, seguimos esse seu último espectáculo - que nós, os seus amigos, sabíamos que era de facto o último que ele poderia dar.
Recordo, também - vai fazer 25 anos -, o Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra. Aí, porque, na altura, a repressão policial era muito forte, ele, não por menos coragem - sempre a teve toda - mas para não prejudicar outras formas de intervenção de estudantes, perguntou-me se seria adequado cantar o seu Coro da Primavera que, depois, acabou por cantar, pela primeira vez. Neste ele diz:
[...]
Ergue-te ó sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores.
Ouvem-se já os clamores,
Ouvem-se já os tambores
[...]
Só quem viveu esse e outros momentos (em que ele batia na viola com os dedos, simulando os tambores), este «movimento» que crescia, é que sabe que o «som» de José Afonso era a esperança não só de uma geração, não só dos seus amigos, não só dos seus companheiros mas de todo um povo que sentíamos que estava atrás de nós.
Muitos dos que estão nesta Câmara talvez tenham discordado muitas vezes de algumas atitudes políticas do Zeca Afonso. Isso é legítimo, só que, como seu amigo e como pessoa que o conhecia bem, deixem que lhes diga que, para além da aparência de uma certa agressividade, o que estava sempre na base das suas atitudes era um homem livre, um homem fraterno, um homem generoso. Poder-se-á ter discordado do Zeca Afonso, mas nunca ninguém o poderá acusar de alguma vez ter tido algum gesto ou de ter praticado algum acto para obter quaisquer benefícios ou quaisquer dividendos. Sempre foi um homem que não teve nada a ver com o poder, não teve nada a ver com oportunismos, não teve nada a ver com transigências de qualquer ordem. Por isso, morreu pobre. Este país tem uma dívida de gratidão para com ele. Morreu à «margem» e o seu enterro constituiu uma impressionante manifestação de pesar. Foi ainda uma manifestação desse seu espírito livre e rebelde: aos amigos não pediu grande música, nem sinfonias, nem nada; pediu para não irem de luto; pediu, antes, que se cantasse no seu funeral - como se cantou - e que o seu caixão fosse, apenas, coberto com um pano vermelho. Era um pano vermelho sem nenhum símbolo, sem nenhuma sigla, sem nenhuma palavra, porque o Zeca nunca se deixou «enfileirar», amordaçar, sempre foi um homem livre dentro dos seus ideais de liberdade, de justiça, de bem-estar para este povo que ele amou.
Por isto, por tudo que ele representa, Portugal está de luto, nós estamos de luto, mas sabemos que o Zeca Afonso, com tudo o que representa, com as suas cantigas, continuará a ser uma voz livre, fraterna e belíssima, no meio do nosso povo.
Por isso o PRD se associa ao voto de pesar pela sua morte e a tudo que se faça para que o País cumpra a dívida de gratidão que tem para com ele.
Aplausos gerais.