"Neste mês de Abril em que as mãos se entrelaçam à espera da madrugada de Maio, um bilhete de coragem. Ao companheiro da canção que tu és desde Coimbra, onde contigo aprendi a desenhar a cantiga contra as muralhas do silêncio obrigatório. Ao poeta e ao cantor que sabes ser, incapaz de existir sem resistir. Ao homem que tu és, sempre de pé nesta guerra que amanhã vamos vencer.
Um bilhete em jeito de recado. Em que te deixo um pedido. Que não te fiques calado nas prateleiras bafientas em que os saudosistas da direita e certa esquerda saudosa vão arrumando os teus discos. Uns para que morras e caias no esquecimento. Os outros para que descanses na redoma dos ídolos que se recordam em jantares de aniversário dos movimentos passados. Uns e outros irmanados no medo de que não cedas e continues a rasgar as ruas do desespero por onde vamos quebrando esta paz falsificada. Que os «vampiros» já andam por aí »batendo as asas/pela noite calada». E os «eunucos», rastejando pela lama, já «lambuzam de saliva os maiorais». Neste país onde a Rádio te procura amordaçar embriagada pela onda de censura em que se vai afogando. Em que a Televisão continua a fingir que não existes, preocupada em não ferir os «sentimentos do povo português», esse «bom povo» a quem se tenta adormecer com festivais de papagaios e balões. Nesta terra onde vegetam por quase toda a Imprensa alguns dos génios da crítica musical que, sentados nas poltronas do compadrio, se entretêm a construir belos sarcófagos para guardar com discursos de homenagem os que não sofrem da sua lamentável hidrocefalia congénita.
Escrevo-te, José Afonso, porque sei que tudo isto te dói. Porque talvez o cansaço te encontre à beira da estrada e te perguntes, por momentos, se vale a pena continuares a ser soldado destas horas. E eu quero dizer-te que aqui ainda existe muita gente que teima em estar acordado e precisa da força da tua voz para cantar na batalha. Porque sei, tenho a certeza, de que estaremos sempre juntos em Abril, enquanto neste país o povo não se convencer de que «o povo é quem mais ordena»."
Vieira da Silva
(Mundo Da Canção nº51 - Abril/Maio de 1979)
Vieira da Silva é um médico, poeta e cantautor português.
Nos anos 60 do século XX, enquanto estudante de Medicina em Coimbra participou activamente no movimento de renovação musical iniciado por Adriano Correia de Oliveira e José Afonso. Entre 1968 e 1976 gravou diversos discos. Foi director da revista Mundo da Canção e em 2002 publicou a colectânea de poesia Marginal - Poemas breves e cantigas. Esteve na 1ª Festa do Avante realizada na FIL em 1976 juntamente com Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, Luís Cília, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, Lopes Graça, Grupo «Outubro«, Manuel Freire entre outros.
Vieira da Silva foi o vencedor do 1º Festival da Música Popular Portuguesa na Figueira da Foz em 1969. Foram convidados especiais, Adriano Correia de Oliveira e Padre Fanhais.
Foto: Vieira da Silva no Externato de Ílhavo - 1969
República Boa-Bay-Ela, foi aqui num quarto onde por vezes pernoitava, que Zeca Afonso escreveu na parede quatro quadras do "O Tecto do Mendigo".
"Tecto" ou "Teto"?
Não sei em que ano foi escrito este poema, mas seguramente foi depois de 1945.
Em 1945 dá-se o Acordo Ortográfico. Antes deste acordo, "TECTO" escrevia-se "TETO". O Decreto 35.228, de 8 de Dezembro de 1945 passou a exigir a inclusão de consoantes mudas em um pequeno número de palavras em que não eram pronunciadas em Portugal, mas o eram no Brasil, quer geral, quer restritamente (caracteres, cacto, tecto).
Zeca escreveu sempre "TETO" e nunca "TECTO" neste poema mas, no entanto, nas edições de "Cantares de José Afonso", "Cantar de Novo" e "José Afonso Textos e Canções", os autores retificaram e colocaram a consoante muda "C" onde ela não existia.
Mudam-se os tempos, muda-se a grafia e, em 2015 (AO de 1990 em vigência a partir de 2015), volta o TECTO a ser de novo "TETO". O poema do Zeca atravessa o tempo e volta a estar atual (atual sem "C").
As quadras do "O Teto do Mendigo" fazem parte da canção "Tecto da Montanha" que Zeca gravou no seu álbum 'Cantares do andarilho' (1968).
"Não era do PC. Passei a aderir à LUAR. Eu próprio já conhecia militantes da LUAR antes do 25 de Abril. Passei a aceitar aspectos da LUAR que eram perfeitamente coincidentes com aquilo que eu pensava, isto é dar apoio ao chamado poder popular, aos órgãos populares de base.(...) A revolução era as ocupações de casas e de terras, a revolução era na transformação de edifícios em creches, em hospitais, etc. (...) Passei a cantar assiduamente (...) quase sempre ao lado de Fanhais, menos vezes com Vitorino e menos assiduamente com o Sérgio (...)
E acompanhei esses camaradas..."
in Zeca Afonso "Livra-te do Medo" de José A. Salvador
Zeca, Fanhais, Sérgio e Vitorino no congresso da LUAR em 24 de fevereiro de 1975.
Em outros comícios da LUAR
Marinha Grande
Redondo
fotos gentilmente cedidas por: Carlos Manuel Duarte
"Consultem-se os comentários ao «Canto Jovem» do qual o «Coro da Primavera» é a introdução coral e orquestral. A composição da letra resistiu a todas as tentativas de lubrificação. O rufar dos tímbalos (ou címbalos?) e dos tambores intervém gradualmente como simples apoio no início, contagiante e poderoso no final"
Como refere aqui uma leitura do comentário do «Canto jovem» aqui vai ele:
«Canto jovem»
"Para ser cantado pelos estudantes universitários que o autor conheceu numa digressão para que foi convidado. Destina-se a ser interpretado como música coral por duzentos figurantes de ambos os sexos e de todas as proveniências e condições."
in Cantares de José Afonso - 2ª edição - 1967 - Nova Realidade
Sem o rufar dos tímbalos (ou címbalos?) e dos tambores, (mais ao jeito do "Canto Jovem") e sem duzentos figurantes de ambos os sexos, aqui fica uma magnífica interpretação do "Coro da Primavera" pelo Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, em Bratislava, dirigidos pelo Maestro Virgílio Caseiro.
Reparar que o som dos pássaros é feito vocalmente pelos Orfeonistas.